Olhos suplicantes...
Ah, como tem coisas lindas nesse mundo! Uma delas é a "voz" de Rubem Alves... a outra é a sensibilidade de um jornalista ao fazer uma foto que diz mil palavras...
Foto: Alberto Meneguzzi - Haiti/2010. |
ASSIM NASCE A BONDADE...
“Se te perguntarem quem era essa que às areias e
aos gelos quis ensinar a primavera...”: é assim que Cecília Meireles inicia um
de seus poemas. Ensinar primavera às areias e aos gelos é coisa difícil. Gelos
e areias nada sabem sobre primaveras.., Pois eu desejaria saber ensinar a
solidariedade a quem nada sabe sobre ela. O mundo seria melhor. Mas como
ensiná-la?
Seria possível ensinar a beleza de uma sonata de
Mozart a um surdo? Como, se ele não ouve? E poderei ensinar a beleza das telas
de Monet a um cego? De que pedagogia irei me valer para comunicar cores e
formas a quem não vê? Há coisas que não podem ser ensinadas. Há coisas que
estão além das palavras. Os cientistas, os filósofos e os professores são aqueles
que se dedicam a ensinar as coisas que podem ser ensinadas. Coisas que são
ensinadas são aquelas que podem ser ditas. Sobre a solidariedade muitas coisas
podem ser ditas. Por exemplo: eu acho possível desenvolver uma psicologia da
solidariedade. Acho também possível desenvolver uma sociologia da
solidariedade. E, filosoficamente, uma ética da solidariedade... Mas o saberes
científicos e filosóficos da solidariedade não ensinam a solidariedade, da
mesma forma como a crítica da música e da pintura não ensina às pessoas a
beleza da música e da pintura. A solidariedade, como a beleza, é inefável –
está além das palavras.
O que pode ser ensinado são as coisas que moram no
mundo de fora: astronomia, física, química, gramática, anatomia, números,
letras, palavras. Mas há coisas que não estão do lado de fora. Coisas que moram
dentro do corpo. Estão enterradas na carne, como se fossem sementes à espera...
Uma dessas sementes é a “solidariedade”. A
solidariedade não é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras,
mercadorias, dinheiro, contratos. Se ela fosse uma entidade do mundo de fora,
poderia ser ensinada e produzida. A solidariedade é uma entidade do mundo
interior. Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. A
solidariedade tem de brotar e crescer como uma semente...
A solidariedade é como um ipê: nasce e floresce.
Mas não em decorrência de mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode
ordenar: “Seja solidário!”. A solidariedade acontece como um simples
transbordamento: as fontes transbordam... Da mesma forma como o poema é um
transbordamento da alma do poeta e a canção, um transbordamento da alma do
compositor...
Já disse que solidariedade é um sentimento. É esse
o sentimento que nos torna mais humanos. É um sentimento estranho, que perturba
nossos próprios sentimentos. A solidariedade me faz sentir sentimentos que não
são meus, que são de um outro.
Acontece assim: eu vejo uma criança vendendo balas
num semáforo. Ela me pede que eu compre um pacotinho de suas balas. Eu e a
criança – dois corpos separados e distintos. Mas, ao olhar para ela, estremeço:
algo em mim me faz imaginar aquilo que ela está sentindo. E então, por uma
magia inexplicável esse sentimento imaginado se aloja junto aos meus próprios
sentimentos. Na verdade, desaloja meus sentimentos, pois eu vinha, no meu
carro, com sentimentos leves e alegres, e agora esse novo sentimento se coloca
no lugar deles. O que sinto não são meus sentimentos. Foram-se a leveza e a
alegria que me faziam cantar. Agora, são os sentimentos daquele menino que
estão dentro de mim. Meu corpo sofre uma transformação: ele não é mais limitado
pela pele que o cobre. Expande-se. Ele está agora ligado a um outro corpo que
passa a ser parte dele mesmo. Isso não acontece nem por decisão racional, nem
por convicção religiosa, nem por mandamento ético. É o jeito natural de ser do
meu próprio corpo, movido pela solidariedade. Acho que esse é o sentido do dito
de Jesus de que temos de amar o próximo como amamos a nós mesmos. A
solidariedade é uma forma visível do amor. Pela magia do sentimento de
solidariedade, meu corpo passa a ser morada de outro. É assim que acontece a
bondade.
Mas fica pendente a pergunta inicial: como ensinar
primavera a gelos e areias? Para isso as palavras do conhecimento são inúteis.
Seria necessário fazer nascer ipês no meio dos gelos e das areias! E eu só
conheço uma palavra que tem esse poder: a palavra dos poetas. Ensinar
solidariedade? Que se façam ouvir as palavras dos poetas nas igrejas, nas
escolas, nas empresas, nas casas, na televisão, nos bares, nas reuniões
políticas, e, principalmente, na solidão...
“O menino me olhou com olhos suplicantes. E, de
repente, eu era um menino que olhava com olhos suplicantes...”.
Extraído da obra:
"As melhores crônicas de Rubem Alves",
Editora Papirus, 2008.
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